quarta-feira, setembro 21, 2005

 

Estado laico? Onde?

O GLOBO, 18-09-05

LULA SUBVERTEU O ESTADO LAICO

O presidente Lula encaminhou carta à Conferência Nacional dos Bispos
do Brasil (CNBB) afirmando que não tem intenção de apresentar ao
Congresso Nacional o anteprojeto de lei elaborado por comissão
tripartite, instituída pelo próprio governo e integrada por
representantes dos poderes Executivo, Legislativo e da sociedade
civil, que, após ampla discussão, propôs uma profunda revisão na
anacrônica legislação brasileira sobre o aborto, editada em 1940.

A proposta básica do anteprojeto é de legalização do aborto no
trimestre inicial da gestação, na linha da tendência internacional,
visando à proteção dos direitos à saúde, à autonomia reprodutiva e à
igualdade da mulher. Esclareço, desde logo, que não é meu propósito
discutir aqui o explosivo tema do aborto. Já se levantou a suspeita
de que a decisão do presidente representaria tentativa de barganhar o
apoio da CNBB, num momento em que seu governo, mergulhado até o
pescoço no escândalo do mensalão, é assombrado pelo fantasma de um
possível impeachment. Mas também não pretendo enveredar pela discussão
das reais intenções do gesto do nosso chefe de Estado.

O que quero examinar é simplesmente a justificativa que foi
apresentada pelo presidente para a sua decisão e a sua compatibilidade
com os princípios democráticos acolhidos pela Constituição brasileira.

Na correspondência enviada à CNBB, Lula disse que pela sua
"identificação com os valores éticos do Evangelho" e pela fé que
recebeu de sua mãe, não tomará "nenhuma iniciativa que contradiga os
princípios cristãos".

Ora, ninguém questiona que o presidente da República, como qualquer
pessoa, tenha o direito de professar a religião que preferir e de
guiar-se, na sua vida pessoal, pelos respectivos princípios e dogmas.
Porém, o Brasil, desde a proclamação da República, é um Estado laico,
e isto o presidente, que jurou cumprir a Constituição, não pode ignorar.

A laicidade do Estado, consagrada no art. 19, inciso I, da
Constituição, não significa apenas a inexistência de uma religião
oficial no país. Mais que isso, ela impõe a completa separação entre
religião e Estado, tanto para proteger as confissões religiosas de
indevidas intervenções dos governantes de plantão, como para assegurar
aos cidadãos que as decisões dos poderes do Estado sejam sempre
tomadas com fundamento em razões públicas, e não a partir de dogmas de
qualquer credo religioso, ainda que majoritário.

Estado laico não significa Estado ateu, pois o ateísmo não deixa de
ser uma concepção religiosa. Na verdade, o Estado laico é aquele que
mantém uma postura de neutralidade e independência em relação a todas
as concepções religiosas, em respeito ao pluralismo existente em sua
sociedade.

Num país como o Brasil, em que convivem lado a lado pessoas das mais
diversas religiões, além de ateus e agnósticos, a laicidade do Estado
representa garantia fundamental da igualdade e da liberdade dos
cidadãos. Por isso, quando o presidente afirma que exercerá a
autoridade que lhe foi conferida por todo o povo brasileiro com base
nos princípios cristãos, ele desrespeita profundamente não
só todos aqueles que não professam a sua religião, como também os que,
católicos como ele, têm uma visão mais clara sobre os fundamentos
legítimos do poder do Estado numa democracia constitucional.

No momento, a sociedade brasileira discute, além do aborto, uma série
de outros temas polêmicos em que a Igreja Católica tem posição
firmada: união civil de pessoas do mesmo sexo, pesquisa em
células-tronco, eutanásia etc. Nestas e em outras questões, as razões
religiosas são válidas na esfera da consciência de cada um, mas não
podem ser o fundamento dos atos estatais.

Por tudo isto, o gesto de Lula representa um perigoso precedente. É
hora de abrir os olhos, pois não é aceitável que o presidente de uma
república laica e democrática fundamente um ato de governo na "fé que
recebeu de sua mãe"!

DANIEL SARMENTO é professor de direito constitucional da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro e procurador regional da República. [i]

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